Entre a terra e o corpo: ser LGBTQIA+ no campo é resistir para existir
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Por Eduardo Sousa
Existe LGBTQIA+ no campo. E resistir na roça, no sertão, em quilombos e aldeias é afirmar que esse lugar também é plural, diverso, humano. A estatística oficial ainda mal mostra essa realidade: em 2022, apenas 0,8 % da população rural se declarou homossexual ou bissexual (contra 2 % nas cidades). Esse número não revela ausência: é sintoma de medo, exclusão, invisibilidade. A floresta de silêncios que recobre o campo só começa a se levantar graças ao esforço de movimentos sociais, coletivos locais e pesquisas pioneiras.

No Nordeste, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, em parceria com o Centro Sabiá e o CETRA, iniciou um estudo em 2022 para traçar quem são essas pessoas: sua condição de trabalho, renda, saúde, gênero, raça, acesso à água e à tecnologia. Passados meses de entrevistas e quase 300 respostas, surgem relatos de discriminação constante, violência não notificada, medo de denunciar e dificuldade para atingir serviços básicos.
No cotidiano da saúde pública, o SUS se mostra falho apesar da existência da Política Nacional de Saúde Integral LGBT desde 2011. No campo, profissionais lidam com preconceito velado – de recusa a atendimentos, uso de pronomes errados, até falta de preparo para tratar pacientes trans – o que afasta muitas pessoas da atenção médica. A falta de amparo institucional gera distância: muitos evitam postos de saúde por medo de constrangimento.
Na escola, o quadro não é melhor. Oficinas em territórios rurais revelam que “casais normais” ainda são entendidos como héteros, e corpos dissidentes são tratados como “anormais”, o que reforça uma cultura de ódio que chegou a vitimar um professor de educação do campo no Paraná, em 2021.
Em assentamentos e quilombos, a presença LGBTQIA+ só ganhou forma visível a partir da organização em coletivos – como o LGBT Sem Terra do MST, surgido em meados de 2010, e outros ligados à agroecologia e reforma agrária. O resultado: menos pessoas saindo do campo, menos “êxodo compulsório” ao buscar nas cidades aquilo que não encontravam em casa. Ainda assim, o caminho é árduo: muitos únicos out na comunidade relatam insegurança, pressões familiares, dificuldade de assumir sua existência e riscos de violência.
No agro comercial, a situação é semelhante. Produtores LGBTs relatam preconceito velado: piadas, exclusão de reuniões, medo de ser despejado ou sofrer ameaças. Um estudante de agronomia no RS, por exemplo, conta que não se sente seguro para estabelecer uma relação afetiva estável no campo por preconceito enraizado na comunidade.
Porém, figuras começaram a emergir como “agrogays”, criando narrativas potentes que sacodem estereótipos. Agentes no sertanejo, influenciadores, agricultores – todos reafirmam: o campo dá espaço para a diversidade. E não apenas no discurso: há quem ocupe cargos de liderança, atue em cooperativas, produza conteúdo, lidere coletivos, debata política territorial com presença LGBTQIA+. Essas pessoas se tornam importantes referências para outras que crescem imaginando futuros mais amplos.
Os riscos são reais: violência física, discursos de ódio, expulsões, assassinatos. Entre 2019 e 2021, casos emblemáticos incluem assassinatos no interior do Pará, Pernambuco e outras regiões, vítimas trans e gays ligados a processos coletivos no campo. Esses dados reforçam o Brasil como o país com maior número de mortes violentas de LGBTQIA+ no mundo – uma média de uma morte a cada 34 horas em 2022. No campo, estima-se que ao menos cinco casos de violência política ocorreram apenas em 2021.
Ainda assim, é na organização, no reconhecimento, no afeto recebido em coletivos e nos debates sobre futuro que surge força. Redes de apoio, ações afirmativas como cotas, mobilização em conselhos locais e universidades rurais geram transformações. O governo estadual da Bahia, por exemplo, já estruturou espaços de escuta e inclusão, com atendimento remoto e centros de defesa dos direitos LGBTQIA+. Em Pernambuco, iniciativas de saúde mental gratuitas alcançam comunidades negras e LGBTQIA+, fortalecendo a resiliência.
A visibilidade LGBTQIA+ no campo, portanto, não é ato trivial: é princípio político, espacial e social. Esvaziar o silêncio significa reconstruir as narrativas – dizer que existir importa. Significa que cada pessoa que permanece no campo, come o fruto que plantou e diz que ama quem ama é um gesto radical. O campo cresce, se diversifica, se reinventa. A presença LGBTQIA+ responde com coragem à violência e oferece esperança.
Não basta saber que existimos nas cidades. É preciso aprender que amar, existir e lutar no campo também é possível. E que a luta por reforma agrária, por educação, por reforma no SUS, pela redistribuição de terra e saberes, só estará completa quando todos, todas e todes tiverem vez.
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